Alô, Macapá!


Figura 1: Céu sobre Macapá às 2:30 de 23 de setembro.

Seria bom se eu tivesse a oportunidade de debater, em tempo real, num chat privado, com os próprios autores de certas idéias estranhas para interpretação dos fenômenos astronômicos já explicados corretamente há séculos. Infelizmente, não sei bem o porquê, estou até hoje esperando que aceitem meu convite. Resta-me, então, escrever a um maior número de pessoas e mostrar que algo não vai bem com as novas propostas apresentadas para descrever o Universo.

Davino faz a festa na Internet e arrebanha seguidores para a Nova Teoria do Sistema Solar, que foi idealizada por ele para corrigir os "enormes erros cometidos pelos cientistas astrônomos ignorantes, distraídos e iludidos, que perdem todo o seu tempo sonhando na frente de computadores e nunca olham para o céu estrelado".

Desejo mostrar a você, paciente leitor deste produto de minha indignação, quem é que não olha para o céu ou, se olha, não consegue entender nada. Veja o que copiei do site de Davino:


"... vi que a Constelação das Três Marias passa sobre o Ponto Zero às 02:30h da manhã no dia 23 de setembro e torna a surgir no dia 21 de março na mesma posição, às 19:00h, sendo encontrada nas duas datas e horários na mesma posição."


O citado Ponto Zero corresponde, neste caso, à cidade de Macapá, na Linha do Equador, para onde Davino viajou, em 2003, com a intenção de provar sua teoria. Portanto, o que me parece claro no texto acima é que, de acordo com as observações de Davino, as Três Marias, aquelas famosas estrelas alinhadas, passaram por cima de Macapá, bem no alto, perto do ponto do céu chamado Zênite, em duas situações:


1) Em 23 de setembro, às 2:30.

2) Em 21 de março, às 19:00.

Não sou um cientista, mas farei como Davino dá a entender que eles são. Ficarei muito distraído e não olharei para o céu, nem aqui de minha cidade, nem de qualquer outro lugar. Vou analisar somente o que meu computador informar que deve ser visto no céu de Macapá, para que possamos tirar, de uma vez por todas, essa "dúvida" que me incomoda de um modo diferente do que se poderia esperar.

Figura 2: Céu sobre Macapá às 19:00 de 21 de março.

A idéia é utilizar as equações que consideram a existência do movimento de translação da Terra, que é negado por Davino. Se os cálculos indicarem corretamente o aspecto do céu que é visto de Macapá, em qualquer situação de data e horário, teremos uma boa garantia de que as equações funcionam e que a Terra deve girar mesmo em torno do Sol, principalmente se ficar também provado que Davino não viu o que ele disse que viu.

Já que não tenho como testar pessoalmente a precisão dos cálculos de uma forma prática, porque não pretendo investir em uma viagem ao estilo daviniano, estarei contando com a boa vontade e a colaboração dos observadores de Macapá. Estes podem e devem olhar, para tirar a "dúvida" em meu lugar e, se quiserem, escrever a mim para relatar suas observações. Caso não escrevam, não há problema algum, porque depois de ter passado minha vida acompanhando o movimento aparente do céu, eu já sei no que vai dar. Então, vejamos dois resultados "ilusórios, destituídos de sentido, gerados por uma das máquinas que enganam os cientistas alienados que perdem seu tempo mergulhados em estudos sobre coisas não relacionadas com o mundo real":


1) A figura 1 mostra o que meu computador calculou que um observador pode ver em Macapá, se ele estiver de frente para o Leste, olhando exatamente para cima, às 2:30 horas da madrugada do dia 23 de setembro de qualquer ano. A marca vermelha indica o ponto mais alto do céu (Zênite). Você está vendo as Três Marias na figura? Não? Eu também não, porque a constelação zenital da figura é a da Baleia. As Três Marias ficam longe dali, em Órion, a cerca de 50 graus de distância angular do Zênite em direção ao Leste. Ainda faltava muito tempo para que elas chegassem ao lugar mais alto do céu quando Davino olhou (será que ele olhou mesmo?). Mas ele disse que naquela data e naquele horário elas estavam acima da cabeça dele. Quem tem razão? Davino ou meu computador? Macapá vai decidir, porque o céu se repetirá no mesmo horário, com boa aproximação, em 23 de setembro de todos os anos de nossas vidas.

2) A figura 2 mostra o que meu computador calculou que um observador pode ver em Macapá, se ele estiver de frente para o Leste, olhando exatamente para cima, às 19:00 horas do dia 21 de março de qualquer ano. Agora estamos vendo as Três Marias na figura, como Davino deve ter visto também no céu. Elas parecem de fato muito altas, mas estão a cerca de 15 graus de distância angular do Zênite em direção ao Oeste. Elas já haviam passado pelo ponto mais alto do céu quando Davino olhou.


Temos um problema, porque, se meu computador estiver certo, Davino não viu as Três Marias passarem pelo ponto mais alto do céu em nenhum dos dois casos. Daí, podemos dizer que ele não foi cuidadoso em suas observações e ainda disse que viu o que não viu. Por isso, ele não pode usar essas informações para concluir que o movimento de translação da Terra não existe. Na verdade, o que não existe no que ele fez é lógica. Quem acreditar no relatório dele sobre as observações feitas em Macapá vai ficar nadando em dúvidas e pode acabar desconfiando de que há mesmo algo errado com a Astronomia em um nível elementar.

Figura 3: Identificação da estrela Mintaka nas Três Marias.

Apesar dos enganos de Davino, podemos brincar com os números para torná-los úteis. Os dois ângulos de diferença (50 graus e 15 graus) entre cada posição das Três Marias e o Zênite, que foram os erros de observação cometidos, podem ser convertidos em unidades de tempo, porque o movimento de rotação da Terra é praticamente uniforme. Como ela gira 360 graus em torno de si mesma a cada 23 horas, 56 minutos e 4 segundos, teremos um tempo de 3,9891 minutos (3 minutos e 59,34 segundos) para cada grau que ela girar (praticamente 4 minutos de tempo por grau). Multiplicando esse tempo por 50 graus e por 15 graus, vamos encontrar 3 horas, 19 minutos e 27 segundos de erro no primeiro caso e 59 minutos e 50 segundos de erro no segundo caso. Então, no primeiro caso (setembro), às 2:30 horas, ainda faltavam cerca de 3 horas e 19 minutos para que as Três Marias chegassem ao ponto mais alto. No segundo caso (março), às 19:00 horas, elas já haviam passado por ele cerca de 1 hora antes. Com esses dados, podemos concluir que os horários em que as Três Marias atingiram o ponto mais alto do céu, em 2003, têm de ser perto das 5:49 horas, em 23 de setembro, e perto das 18:00 horas, em 21 de março. Calculando diretamente, com um simulador do céu no computador, encontrei 5:49 e 18:00, ou seja, a mesma coisa. Isto é bonito, não é?

Você notou o que significam esses números? Eles estão nos dizendo que, nos equinócios, quando o Sol cruza a Linha do Equador, as Três Marias passam sobre Macapá por volta das 6 horas da manhã, em setembro, e por volta das 6 horas da tarde, em março. Agora, pense um pouco. Nos dois casos, aquelas estrelas estão altas, perto do Zênite, e o Sol está perto do horizonte. Temos um ângulo Estrelas-Terra-Sol perto de 90 graus, mas as duas situações são muito diferentes, porque, em setembro, o Sol está nascendo no Leste e, em março, o Sol está se pondo no Oeste. Então, algo mudou muito em seis meses. Ou foi o Sol que mudou 180 graus de posição, girando em torno da Terra, ou foi a Terra que mudou 180 graus de posição, girando em torno do Sol. Só falta escolher a melhor entre as duas possibilidades.

Pensando ainda mais, o que Davino diz que viu contraria totalmente a hipótese dele de que a Terra está sempre situada entre o Sol e as Três Marias. Se a Terra estivesse de fato quase fixa naquela posição, o ângulo Estrelas-Terra-Sol deveria ser sempre próximo de 180 graus, já que ocorreria um alinhamento permanente. Mas Davino, sem querer, provou que esse ângulo é de 90 graus em março. E agora? Como ele explica isso? E o que dizer de um ângulo muito menor em junho, por volta dos 23 graus, previsto pelo meu computador?

Todos os testes apontam para a existência do movimento de translação, mas Davino continua insistindo em negá-lo. Por isso, numa tentativa de salvar algum macapaense que ainda acredite que ele possa ter encontrado um erro básico na Astronomia, vou deixar aqui uma tabela para orientar futuras observações em Macapá. Ela foi calculada em meu computador e fornece algumas datas e horários das passagens das Três Marias pelo ponto mais alto do céu para o ano de 2005. Das três estrelas, Mintaka, mostrada na foto da figura 3, é a que mais se aproxima diariamente do Zênite. A tabela foi feita para ela:


Culminação da estrela Mintaka em Macapá
JAN  01  23:09
     06  22:49
     11  22:29
     16  22:10
     21  21:50
     26  21:30
     31  21:11
FEV  05  20:51
     10  20:31
     15  20:12
     20  19:52
     25  19:32
MAR  02  19:13
     07  18:53
     12  18:33
     17  18:14
     22  17:54
     27  17:35
ABR  01  17:15
     06  16:55
     11  16:36
     16  16:16
     21  15:56
     26  15:37
MAI  01  15:17
     06  14:57
     11  14:38
     16  14:18
     21  13:58
     26  13:39
     31  13:19
JUN  05  12:59
     10  12:40
     15  12:20
     20  12:00
     25  11:41
     30  11:21

JUL  05  11:01
     10  10:42
     15  10:22
     20  10:02
     25  09:43
     30  09:23
AGO  04  09:03
     09  08:44
     14  08:24
     19  08:04
     24  07:45
     29  07:25
SET  03  07:05
     08  06:46
     13  06:26
     18  06:06
     23  05:47
     28  05:27
OUT  03  05:07
     08  04:48
     13  04:28
     18  04:08
     23  03:49
     28  03:29
NOV  02  03:10
     07  02:50
     12  02:30
     17  02:11
     22  01:51
     27  01:31
DEZ  02  01:12
     07  00:52
     12  00:32
     17  00:13
     21  23:53
     26  23:33
     31  23:14


A tabela nos mostra que os horários calculados variam continuamente. Se a Terra estivesse sempre entre o Sol e as Três Marias, elas deveriam passar perto do Zênite em um único horário fixo: à meia-noite. Mas a tabela mostra que no dia 20 de junho elas passam sobre Macapá ao meio-dia. Como é possível? Se isso de fato acontecer, as Três Marias não podem estar sempre em oposição ao Sol quando vistas da Terra. Em junho, elas vão estar para o mesmo lado que o Sol estiver. Então, se Davino diz uma coisa e meu computador diz outra, um deles se enganou. Os observadores de Macapá poderão resolver isso, comparando a tabela com o céu durante a parte do ano em que o horário da culminação de Mintaka for noturno, para que ela possa ser vista a olho nu. Aos proprietários de bons telescópios, é bom saber que a mesma estrela pode ser vista durante o dia.

Imagine por um momento que a Terra gire em torno do Sol. Vamos fazer uma aproximação grosseira de que o ano tenha 360 dias, só para facilitar as contas. Como a circunferência tem 360 graus, a Terra caminha 1 grau por dia em sua órbita. Então, a estrela Mintaka deve se afastar 1 grau por dia de sua posição relativa, em vez de passar pelo Zênite sempre à meia-noite. Se ela for vista hoje no Zênite, amanhã estará, no mesmo horário, 1 grau afastada dele. Mas quanto 1 grau representa em termos de tempo pela rotação da Terra? Isso nós já sabemos que são cerca de 4 minutos, obtidos quando dividimos 24 horas por 360 graus. Então, se 1 grau fora do lugar equivale a 4 minutos de tempo fora do lugar, podemos dizer que a estrela passa pelo Zênite com 4 minutos de diferença cumulativa por dia. Agora, olhe para a tabela e note como a cada 5 dias a variação de horário é próxima de 20 minutos, a cada 15 dias é próxima de 1 hora, a cada mês é próxima de 2 horas, a cada semestre é próxima de 12 horas e depois de 1 ano se anula e faz acontecer a culminação no mesmo horário. É um fenômeno natural de uma perfeição magnífica, observado atentamente durante os últimos milênios, que pessoas como Davino, prisioneiras de um mau sonho, não conseguem perceber.



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