O teste de Davino


Volto a comentar aqui sobre as estapafúrdias e paranóicas teorias que estão se espalhando pela Web. O meu prato predileto é a que "prova" que a Terra não gira ao redor do Sol, elaborada pelo Sr. Davino Servídio, o qual teve a oportunidade de explaná-la na TV, no Programa do Jô. Essa teoria foi elogiada no site "Show da Lua", aquele que "prova" que a NASA enrolou todo o mundo e não enviou ninguém à Lua. A união faz a força, não é? Já dá até para fundar um clubinho de pseudociências, que hoje em dia não teria dificuldades para arrebanhar sócios.

Gostaria de entender como é o "Teste Servídio", proposto no "Show da Lua". Já li muitas vezes, mas não consegui captar direito o que o colega Davino sugere que façamos para provar que a Terra não gira ao redor do Sol. Ao que tudo indica, teríamos de partir da cidade de Macapá, no dia 21 de setembro, à meia-noite, caminhando sem parar para o Sul, a 60 km por dia, sobre o meridiano local (51º W, não nº16o), até o dia 21 de dezembro. Depois disso, tomaríamos o sentido do Norte, na mesma velocidade, sem parar, passando por Macapá em 21 de março e chegando a um certo ponto do Hemisfério Norte em 21 de junho. Daí, voltaríamos novamente para o Sul, para retornar a Macapá em 21 de setembro, 1 ano após o início da longa caminhada. É isso mesmo? Entendi direito? Muito bem. Façamos primeiro alguns cálculos aproximados.

Supondo que eu tenha entendido corretamente, o primeiro percurso demora 3 meses, de setembro a dezembro. A 60 km por dia, vai dar uns 5400 km. Como o meridiano completo tem uns 40 mil quilômetros, devo andar algo por volta de 13,5 por cento dele. Como 13,5 por cento de 360 graus dá quase 49 graus, devo chegar perto do paralelo 49 graus Sul, no mesmo meridiano de Macapá. No caso, é certo que irei me molhar, lá para os lados das Ilhas Malvinas. Mas, tudo bem. No segundo percurso, devo ir direto, em 6 meses, até perto do paralelo 49 graus Norte, lá ao lado da Terra Nova, na maior parte do tempo dentro d'água. Depois, no terceiro e último percurso, devo nadar de volta até Macapá, completando uma viagem que totaliza 21600 km. Será mesmo que não perderei as Três Marias de vista, se eu sobreviver ao difícil teste?

Quem olha sempre para o céu noturno percebe seu movimento aparente. É lógico que as Três Marias vão nascer no Leste e se pôr no Oeste por causa da rotação da Terra. Acho que Davino não está negando isso. Ele deve saber que vamos deixar de vê-las muitas vezes. Talvez ele esteja querendo dizer que devemos observar as Três Marias somente à meia-noite. Se assim for, o que acontecerá durante a viagem de teste? Em primeiro lugar, cada grau caminhado sobre o meridiano em um sentido fará as Três Marias se deslocarem 1 grau no sentido oposto. Essas estrelas irão, então, dançar lentamente sobre a direção Norte-Sul (meridiano). Em segundo lugar, mesmo que Davino negue, cada grau que a Terra caminhe ao redor do Sol fará as Três Marias caminharem 1 grau para o Oeste, se observadas num mesmo horário. Assim, teremos um movimento aparente que ficou desnecessariamente complicado por causa da nossa viagem, cuja razão não entendi. Mas uma coisa eu garanto, porque observo o céu desde criança: não há como vermos as Três Marias durante o ano todo, se olharmos num mesmo horário, pouco importando se estivermos em Macapá, Uberlândia ou Cabeceira do Valão do Barro. Somente perto dos pólos é que a coisa muda um pouco de figura.

A viagem sobre o meridiano, sugerida por Davino, talvez tenha origem na idéia dele de que o eixo da Terra balança na direção Norte-Sul e que eu devo me deslocar para compensar esse movimento que supostamente seria o causador da variação de declinação do Sol. Se for isso, não entendo a razão de balançar tanto, já que ele deveria variar somente 23,5 graus para cada lado de sua posição média, não 49 graus. Vai ver que é a tal matemática que desmascarou Einstein. Mas, de um jeito ou de outro, o eixo terrestre não balança assim, como qualquer criança curiosa pode perceber. E quem achar que vai ver as Três Marias no mesmo lugar do céu à meia-noite, se percorrer o meridiano a 60 km/dia, está muito enganado. Ou então, enganado estou eu por não ter entendido nada do que Davino tentou explicar no próprio site. Talvez algumas figuras do modelo dele ajudassem, mas o site que vi só continha texto.

Perco um tempo enorme por não me conformar ao ver essas pessoas presas num transe hipnótico que não as deixa pensar direito. O meu impulso natural para ensinar me impele a mostrar a elas o caminho da razão, mas, por mais que eu apresente argumentos lógicos, eles caem no vazio, porque não se encaixam nos estranhos modelos que as escravizaram. No fim de tudo, acabo sendo apontado como um dos que não querem que a verdade oculta seja descoberta pelo povo. E isso é muito desagradável para mim, porque eu não sou assim. Uma solução seria ignorar essa turma confusa, como já me sugeriram, mas eu não resisto e acabo entrando na discussão, porque me incomoda demais ver um fato físico tão simples ser deturpado ao ponto de se transformar numa bagunça irracional e, mesmo assim, conseguir convencer um monte de gente boa.

É fácil pegar um modelo de Sistema Solar e testar com observações astronômicas. Por que Davino não desenha o modelo dele para a gente testar? Como ele explica as conjunções e oposições planetárias, se diz que os planetas não giram ao redor do Sol? Por que vemos os planetas em movimentos relativos ao fundo de estrelas distantes? Por que as estrelas que vemos no verão não são as mesmas que vemos no inverno? E, principalmente, por que o céu da meia-noite numa certa data se repete somente na mesma data nos anos seguintes? Estes são fatos que resultam da observação sistemática. Não adianta querer negá-los ou ignorá-los para poder justificar modelos mirabolantes. Se um modelo não os explica, não serve. O modelo oficial, contra o qual Davino se coloca, explica tudo isso com perfeição e prevê as posições dos astros e as circunstâncias de fenômenos com muita antecedência e grande precisão, como todos nós sabemos. Então, quem tem razão?

Para chegarmos a produzir alguma coisa útil, o correto seria observarmos os movimentos dos astros e depois tentarmos explicá-los através de teorias. Acontece que isso já foi realizado maravilhosamente bem por pessoas inteligentes e criativas que nos antecederam neste mundo e que encontraram modelos e equações que podem hoje ser analisados e testados. Portanto, se eu digo que as equações funcionam, não é por causa de uma aceitação cega de minha parte nem porque estou me submetendo às imposições de cientistas maquiavélicos poderosos, descabelados e de olhos vermelhos, que querem dominar o mundo e queimar a Bíblia. Eu defendo as equações porque lido com elas diariamente e vejo seus excelentes resultados. Como elas espelham o modelo oficial, é porque ele está correto. Quem não entender isso estará trilhando o caminho da ignorância total, causada por uma paranóia grave e um ódio mal direcionado.

Ao ver certas coisas publicadas na Web, a impressão que tenho é que alguém elabora primeiro uma teoria e depois afirma, sem testar, que o Universo se comporta de acordo com ela. O resultado é um universo de escrivaninha, que se encaixa perfeitamente na teoria, porque foi feito para ela, mas que nada tem a ver com o nosso mundo físico. Quando isso ocorre, não adianta apontar as falhas do modelo, citando a realidade que observo na prática, porque qualquer coisa que eu disser vai ser sempre comparada àquele modelo ilusório. Se não se enquadrar nele, o errado sou eu. Desse jeito fica muito difícil.

Aos pacientes leitores desta página, deixo como sugestão uma noitada para observação do céu e realização do "Teste Silvestre". Ele é mais simples, porque ninguém vai precisar nadar milhares de quilômetros. Consiste na caçada às Três Marias em uma meia-noite de meados de junho, em qualquer lugar do Brasil, incluindo Macapá. O primeiro a encontrar essas estrelas ganha dez caixas de bombons de chocolate, que serão transportadas ao local de entrega, cada uma delas num Rolls-Royce do ano folheado a ouro. Se o ganhador assim desejar, pode ficar também com os automóveis.

Acho que essa questão da translação da Terra ao redor do Sol poderia ser resolvida em um debate virtual numa lista de discussão específica ou num chat privado. Eu aceitaria o desafio. Tenho a certeza de que seria muito produtivo e enriquecedor para ambas as partes. Alguns iriam aprender astronomia, enquanto outros iriam descobrir como pensam as pessoas leigas em ciências.

Cadê o Davino?


Roberto F. Silvestre
31 de agosto de 2003



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