A "polêmica" translação da Terra


Figura 1

É comum que as pessoas que não têm atividades relacionadas com as ciências exatas fiquem sem entender a razão de não vermos o movimento de translação da Terra espelhado nas estrelas. Afinal de contas, quando nos movimentamos pelas ruas de uma cidade, a pé ou utilizando algum veículo, os prédios vão ficando para trás, mas ao olharmos para o céu noturno, não percebemos nenhum deslocamento aparente das estrelas além daquele, muito evidente, causado pela rotação da Terra ao redor de seu eixo, num tempo aproximado de 24 horas. Daí parecem vir as dúvidas de alguns sobre se de fato a Terra faz uma volta completa por ano ao redor do Sol. Para resolver isso, vamos fazer aqui uma análise detalhada desse estranho fenômeno que de certa forma contraria o nosso bom senso.

Imagine-se viajando em um carro por uma estrada retilínea a uma velocidade constante, digamos, de 100 km/h (figura 1). Você vai notar que o seu movimento fará com que os objetos próximos ao acostamento pareçam passar rapidamente para trás. Mas, ao observar os objetos mais distantes, através de uma janela lateral, ocorre algo interessante: quanto mais distantes estiverem, mais lentamente parecerão deslocar-se no mesmo sentido. As montanhas do horizonte já darão a impressão de quase imobilidade. Por que isto acontece? Todos os objetos não deveriam igualmente parecer que se movem a 100 km/h para trás?

Para fixar idéias, considere a Terra plana e infinita, como às vezes ela dá a impressão de ser. Agora, pense com cuidado. Cada metro que você andar para a frente na estrada fará com que todos os objetos externos "imóveis" se desloquem 1 metro para trás em relação a você, sem nenhuma dúvida. Acontece, porém, que você não vê uma régua de 1 metro com a mesma aparência de tamanho, se ela for colocada a diferentes distâncias. Quanto mais longe ela estiver de você, menor parecerá. É por isso que aquele metro que a montanha distante anda para trás produz um efeito visual de deslocamento tão pequeno. Percebeu bem isso? Não é a medida linear que nos dá a impressão de deslocamento. O que importa é a medida angular, que depende fundamentalmente da distância.

Ao observar a paisagem lateral durante a sua viagem pela estrada, todos os objetos estarão passando a 100 km/h para trás, mas você vai notar que os mais próximos terão um deslocamento angular maior, num mesmo intervalo de tempo. Figura 2 Por isso parecerão rápidos. Mas os mais distantes terão um deslocamento angular menor, parecendo lentos. Isso fica evidente na figura 1, quando se percebe que as distâncias AB, CD e EF são iguais, mas os ângulos sob os quais elas são observadas diferem entre si. O efeito resultante disso pode parecer surpreendente à primeira vista, porque o veículo fica emparelhado com os objetos B, D e F, em um certo instante, enquanto, logo depois, fica emparelhado com os objetos A, C e E. Como, então, os objetos mais próximos da estrada podem passar "mais rápido" do que os mais distantes? Pense bem nisso.

Este fenômeno de deslocamento pode ser utilizado para a determinação de distâncias, como nossos cérebros fazem quando processam as duas imagens diferentes produzidas por nossos olhos. Os astrônomos fazem o mesmo, quando observam uma estrela a partir de dois pontos opostos da órbita terrestre, os quais estão separados por cerca de 300 milhões de quilômetros. Vamos exemplificar isso, supondo a órbita da Terra com uma forma exatamente circular, com o Sol no centro.

Imagine que uma estrela tenha sido observada nessas condições, como mostra a figura 2 em perspectiva. O ângulo formado entre o Sol e a estrela foi medido em duas épocas diferentes separadas por seis meses. Como o comprimento da base do triângulo é conhecido, fica fácil descobrir todos os elementos geométricos que faltam. Se você não gostar de cálculos, basta desenhar o triângulo em escala e medir os segmentos com uma régua. Você pode usar um segmento de 30 centímetros para representar o diâmetro da órbita da Terra. Após marcar os dois ângulos determinados pelos instrumentos astronômicos, desenhe os lados que completam a figura. Para encontrar as distâncias àquela estrela nas duas épocas, meça os dois lados do triângulo em centímetros e multiplique cada um deles por 10 milhões. Os resultados vão aparecer em quilômetros.

Vejamos um caso numérico fictício. Suponha que você tenha feito a primeira medida angular em janeiro, encontrando 45 graus, e a segunda medida em julho, encontrando 60 graus. Ao desenhar o triângulo com uma base de 30 centímetros, você vai encontrar medidas de 26,90 e 21,96 centímetros para os outros lados, que correspondem a 269,0 e 219,6 milhões de quilômetros. Simples, não é? Porém, antes que você se empolgue e vá lá fora medir as distâncias estelares com uma lunetinha e um transferidor, deixe-me explicar por que isso não vai funcionar.

O fato de o Sol nos tirar a visão das estrelas não chega a ser um problema insuperável à realização do experimento acima, pois já vi estrelas durante o dia pelo telescópio. Poderíamos também utilizar métodos indiretos e medir os ângulos entre a estrela e o Sol durante a noite. Isso não vai nos atrapalhar muito. A verdadeira encrenca surge quando nos deparamos com a ordem de grandeza das distâncias que pretendemos medir. Figura 3 Alpha Centauri, por exemplo, a nossa vizinha mais próxima, está situada a 41 trilhões de quilômetros. Como ficaria o nosso triângulo neste melhor caso entre todos? Já que essa distância corresponde a 137 mil vezes o diâmetro da órbita da Terra, o triângulo deverá ser desenhado com uma base de 30 centímetros e os outros dois lados com cerca de 41 quilômetros!!!

Pelo formato incomum do triângulo deste exemplo, percebe-se que as estrelas estão muito mais distantes do que a maioria das pessoas imagina. Pode-se notar que os dois lados que estamos interessados em medir ficam praticamente paralelos, enquanto aqueles dois ângulos vão somar quase 180 graus (figura 3). Em termos práticos, o que ocorre é que as duas observações da estrela apresentarão uma diferença de posição insignificante, somente registrada em instrumentos de grande precisão e apenas para as estrelas mais próximas. Sendo assim, pense bem se você deveria mesmo esperar ver algum movimento nas estrelas, causado pelo deslocamento da Terra ao redor do Sol.

Um dos fatos que deixam as pessoas confusas é que o movimento de translação nos faz percorrer uma circunferência imensa sem produzir movimento aparente nas estrelas, enquanto o movimento de rotação nos faz percorrer uma circunferência relativamente pequena, dezenas de milhares de vezes menor, mas causa um deslocamento aparente descomunal nas estrelas. Como pode ser isso? Por que um pequeno movimento circular produz um enorme efeito visual e um outro de mesmo formato e com diâmetro muito maior não produz nenhum? Vejamos isso a seguir, com muito cuidado.

Você já sentiu o seu poder de causar um enorme movimento nas estrelas, sem se deslocar um único centímetro? É muito simples: fique de pé e gire o seu corpo sem sair do lugar; todo o Universo girará ao redor de você. Este fato mostra bem que não é o deslocamento do observador sobre uma circunferência durante a rotação da Terra que causa o movimento que vemos no céu. Ele é causado pela própria rotação, indicando, mais uma vez, que o que importa é a variação angular. Uma pessoa de pé no Pólo Norte, por exemplo, não se desloca sobre uma circunferência durante a rotação da Terra, mas vê o mesmo movimento aparente das estrelas.

Se a Terra perdesse a sua rotação mas continuasse na sua translação habitual ao redor do Sol nós veríamos as estrelas sempre nos mesmos lugares. Seria fácil olhar para uma delas através de um telescópio, porque depois que se centralizasse a imagem da estrela no campo visual do aparelho, ela ficaria ali para sempre. Figura 4 Uma desvantagem estaria no fato de que só seria possível ver uma metade do Universo; a outra estaria escondida de quem não quisesse viajar. Outra desvantagem seria termos seis meses contínuos por ano sem ver o céu noturno, por causa da luz solar, para não falar nos problemas ambientais que isso causaria. Mas, mesmo com este quadro estranho, de estrelas imóveis, teríamos como comprovar a nossa translação ao redor do Sol.

Um teste para comprovação do movimento de translação é o da observação do céu em épocas afastadas por seis meses. A figura 4, fora de escala mas respeitando a inclinação real do eixo da Terra, mostra duas situações vividas por um mesmo observador em datas e lugares diferentes. Ele olha exatamente para cima à meia-noite, em junho, a partir de um local sobre o Trópico de Capricórnio (seta vermelha da esquerda), e bate uma fotografia das estrelas que vê. Em dezembro ele viaja ao Trópico de Câncer e bate outra foto da parte alta do céu à meia-noite (seta vermelha da direita). Pelo que se nota na figura, se a Terra tiver mesmo se deslocado para o ponto oposto de sua órbita em seis meses, as duas fotos serão totalmente diferentes, porque mostrarão metades distintas do Universo. Quem não acredita na translação da Terra deveria realizar esse teste, para ver como ele a comprova.

Nós não precisamos viajar para notar a translação. Quem tem o hábito de olhar regularmente para o céu noturno percebe que ele se desloca para o lado oeste, se for observado todos os dias num mesmo horário. Por dia dá um ângulo próximo de 1 grau, mas em 1 mês já são 30 graus, em seis meses são 180 graus e em 1 ano são 360 graus. Como é possível que algumas pessoas não percebam a grande dica que estes números estão nos dando? Será que ninguém nota um movimento tão evidente como esse? Olhe para o céu e liberte-se desta dúvida para sempre.

As estrelas estão longe demais para fazer uma volta em torno de nós por ano. E não são somente as estrelas visíveis a olho nu que realizam esse movimento aparente, mas todo o Universo, de Alpha Centauri até a mais distante galáxia observável pelos grandes telescópios de que dispomos atualmente, tudo de forma tão perfeitamente sincronizada que mais parece um imenso quadro pintado num fundo esférico distante. Para que tudo isso de fato girasse assim ao redor de nós, as velocidades teriam, ilogicamente, sem causa física, de aumentar com a distância, chegando a ultrapassar a velocidade da luz por dezenas de bilhões de vezes. Portanto, esse movimento é mesmo nosso, não do Universo.

Há uma força fazendo a Terra se mover desse modo. Ela é a atração gravitacional do Sol, porque onde há massa há gravidade. Sem a ação de forças, a Terra estaria parada ou teria um movimento retilíneo e uniforme. Na presença da força que o Sol exerce sobre a Terra, não há como ela ficar parada. Ela terá obrigatoriamente um movimento curvo ou um movimento reto com velocidade variada. Se a Terra estivesse parada em relação ao Sol, ela seria atraída e acelerada em sua direção até o instante do choque final. Para nossa felicidade, ela descreve uma curva fechada.



VOLTAR